Direitos autorais continuam desprotegidos na internet
Ricardo Maffeis e Daniel Bittencourt Guariento
Há exatos dois anos, em 11 de outubro de 2019, iniciávamos nossa coluna comentando que, passada então metade de uma década da promulgação do Marco Civil da Internet, ainda não havia sido atualizada a legislação autoral, sendo claramente insuficientes as previsões contidas na lei 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais – LDA) para regulamentar os direitos de autor e conexos no âmbito da internet.
Na oportunidade, lamentávamos que o anteprojeto de modernização da lei, cujo trâmite teve início em 2010, havia sido esquecido nos escaninhos de Brasília, ao tempo em que o Ministério da Cidadania realizara nova consulta pública para reforma da LDA, deixando de lado tudo o que havia sido debatido por especialistas e sociedade nos anos anteriores.
Transcorridos mais dois anos até os dias de hoje, não se avançou quase nada. Não há nenhuma informação sobre a consulta pública nos sites da Secretaria da Cultura ou da Secretaria Nacional de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual. Aqui, um parêntesis digno de nota: para consultar as informações sobre a Secretaria, é obrigatório criar um cadastro no portal do governo federal1 ou acessar por meio de certificado digital, nas duas opções com fornecimento de um número válido de telefone celular – que é confirmado com o envio de código por SMS – em total desapreço à ampla publicidade que deveria nortear as informações do governo, sem falar no potencial abuso dos princípios da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, em especial o princípio da necessidade.
Fato é que, mesmo tendo passado por tão grandes e rápidas transformações – dos CD’s ao Spotify, da TV a cabo aos serviços como Netflix e Globoplay, dos livros impressos aos e-books – o direito autoral permanece não adequadamente tutelado na internet e, assim, mal protegido. Isso, somado à ainda baixa percepção por parte da sociedade dos males da pirataria e da gravidade de se adquirir e livremente compartilhar cópias piratas de livros, filmes e músicas, bem como senhas de assinaturas individuais de plataformas de streaming, faz com que a situação seja ainda mais dramática.
Atualmente, o Congresso Nacional discute projeto de lei que prevê multas de até R$ 50 mil para fraudes aos direitos autorais (substitutivo ao PL 5.675/2019), questão meramente periférica ao debate principal e, em paralelo, o governo federal tentou, por meio da malfadada Medida Provisória 1.068 – em boa hora suspensa pelo STF e devolvida à presidência da República pelo presidente do Senado Federal2 – disciplinar a matéria juntamente com a tentativa de impedir que as redes sociais pudessem excluir fake news e perfis acusados de espalhar discurso de ódio e informações falsas3.
Embora nossa posição fosse frontalmente contrária à MP n° 1.068, especialmente pela falta de debate em sua edição e imediata entrada em vigor, seu texto apresentava um tímido avanço no ponto específico dos direitos autorais, como na definição de “justa causa” a permitir: (i) a suspensão ou até o cancelamento de uma conta ou perfil em rede social no caso de oferta de produtos que violem direitos autorais; e (ii) a suspensão ou bloqueio de conteúdo postado por terceiro destinado a difundir o uso de aplicativos ou tecnologia voltados à violação de tais direitos (arts. 8º-B, § 1º, V e 8º-C, § 1º, II, “i”, da proposta de nova redação do Marco Civil).
Com a conjugação desses três fatores: anteprojeto de lei deixado de lado, MP rejeitada (devolvida) pelo Congresso e projeto de lei que irá começar do zero, com mínimas alterações na regulação da matéria, os tribunais seguem majoritariamente aplicando a regra geral da responsabilidade subjetiva prevista no artigo 19 do Marco Civil da Internet, obrigando os ofendidos a se socorrerem do Judiciário para a remoção de conteúdo que viole direitos autorais, embora a LDA preveja responsabilidade solidária e punição a todos que venderem, distribuírem ou tiverem em depósito “obra ou fonograma” reproduzidos com fraude, para obtenção de ganho direto ou indireto, para si ou para outrem, com possibilidade de aplicação de sanções cíveis e penais aos que transmitirem ou retransmitirem, “por qualquer meio ou processo”, obras artísticas, literárias e científicas mediante violação aos direitos de seus titulares (arts. 104 e 105).
Assim, em plena era em que tudo está na internet e as mídias físicas são substituídas pelo acesso virtual, os provedores de aplicações de internet, fundados na justificativa de não estarem obrigados a fazer controle prévio de conteúdo4, nem poderem censurar terceiros sem ordem judicial de remoção, muitas vezes acabam por escapar da responsabilidade por violação a direitos autorais graças à ausência de legislação específica que regule o tema.
Nobel da Paz premia liberdade de expressão
Os jornalistas Maria Ressa e Dmitri Muratov, ela das Filipinas e ele da Rússia, receberam o Prêmio Nobel da Paz de 2021, em clara mensagem de defesa das liberdades de expressão e de imprensa, sistematicamente atacadas em diversos países.
Em reportagem da Folha de S.Paulo, a porta-voz do comitê responsável pelo prêmio fez questão de pontuar que, embora essencial para a vida democrática, a liberdade de expressão não é absoluta e não pode ser utilizada como salvaguarda para abusos: “Temos mais imprensa e informação do que nunca, mas também temos o abuso e a manipulação da liberdade de expressão e do discurso público com as fake news. A liberdade de expressão é cheia de paradoxos. Fake news também são violações da liberdade de expressão”.
O recado ultrapassa as fronteiras filipinas e russas e encontra destinatários também no Brasil, como se viu com a comentada MP nº 1.068, cujo objetivo implícito, sob o manto da defesa da liberdade de expressão, era justamente impedir que as redes sociais pudessem combater a propagação de fake news5.
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1 Acesso mediante cadastro.
2 Após devolução pelo Senado, o governo enviou ao Congresso Nacional projeto de lei de idêntico teor à MP, o que possibilitará debate pelo Legislativo.
3 Embora o projeto se apresentasse publicamente como em defesa da liberdade de expressão.
4 Reconheça-se que alguns provedores, ao identificar em suas plataformas violação a direitos autorais, promovem imediatamente o bloqueio do conteúdo. A prática, contudo, não é regra.
5 Sobre o tema, confira nossa coluna “Medida provisória ‘coloca fogo’ nos debates sobre liberdade de expressão na internet”.
Fonte: www.migalhas.com.br